Foi numa daquelas imersões no feed do Instagram que descobrimos o @habitaraquarentena. O perfil coleciona imagens de pessoas em suas casas em situações cotidianas e casuais, uma forma bem diferente da que estamos acostumados a ver ness rede social. Cada álbum de fotos retrata como a vida está acontecendo em família ou sozinho durante o isolamento. Decidimos conversar com a criadora do projeto, a arquiteta Camila da Rocha Thiesen.
Camila se define como inquieta e uma apaixonada por desenho em qualquer escala. Não é à toa que na atuação como arquiteta desenvolve desde mobiliário até projetos urbanos. Também é apaixonada por pessoas e por suas histórias. Falante, ela exercita a escuta de forma constante. Dessa mistura de inquietação, do gosto por se comunicar com diferentes pessoas, de ouvir e trocar experiências nasceu o habitar a quarentena. Confira a entrevista.
Como surgiu a ideia do habitar a quarentena?
Com a quarentena, as obras e os serviços considerados não essenciais foram paralisados e clientes passaram a postergar tomadas de decisões. Assim, com menos horas de trabalho demandadas, mesmo me adaptando à nova rotina, a cabeça não sossegava. Com essa inquietação, me perguntei como as pessoas estariam habitando nesse momento tão singular, coabitando de maneira tão intensa, adaptando suas atividades ao lar, e ainda, se esse período influenciaria na Arquitetura daqui pra frente. Buscando respostas, criei o @habitaraquarentena para refletir sobre os efeitos do distanciamento social no morar contemporâneo – tema que já me interessava.
Como os relatos chegam até você?
O projeto iniciou com a participação das minhas irmãs e de amigos próximos. Aos poucos foi ganhando colaboradores amigos de amigos até chegar aos desconhecidos, que conheceram o projeto através das divulgações que foram feitas nos sites de arquitetura e pelo próprio Instagram. A participação é aberta para todas as pessoas - seja em quarentena, autoisolamento ou, ainda, as pessoas que seguem nas ruas e que tenham sido afetadas com a nova rotina. Como a intenção é que as contribuições sejam as mais diversas possíveis, pessoas estrangeiras também podem participar - os relatos podem ser enviados em português ou inglês para o e-mail do projeto (habitaraquarentena@gmail.com).
O que você tem aprendido sobre os hábitos das pessoas e as mudanças de comportamento em casa com os relatos que você recebe?
Os relatos já recebidos são muito interessantes. Vários apresentam semelhanças, mas cada casa é um caso. O aspecto mais comentado é a adaptação do trabalho profissional em casa - e como isso se dá - seguido de outras atividades que aconteciam fora de casa, como por exemplo, terapia e exercícios físicos. Em relação aos fatores da casa, os colaboradores, agora, reconhecem como a luz e a ventilação são importantes no lar, do mesmo modo quanto à possibilidade de olhar para fora - seja através das janelas ou de sacadas – e de ter um certo “isolamento”, ainda que mínimo, para desenvolver as tarefas que exigem mais privacidade.
A necessidade de ter um vestíbulo e uma lavanderia maior foi apontada, assim como alguns colaboradores já sinalizam, nos seus relatos, intenções de modificações na casa - desde a troca do sofá para um mais confortável até alterações nos ambientes para criação de escritório fechado – e, ainda, reconhecem erros e acertos nas escolhas que fizeram em etapa de projeto, por terem subestimado aspectos de iluminação ou de dimensionamento dos espaços. A maioria dos relatos aborda a questão da convivência intensa - seja a dois ou em maior número – como um momento de todos trabalharem em equipe para realizar as tarefas da casa e para manter uma boa relação entre os moradores, respeitando as individualidades de cada um. Os participantes que moram sozinhos relatam que as videochamadas e/ou seus animais de estimação são grandes aliados neste momento. Para todos, a quarentena tem se revelado como um período de ressignificação e redescobertas pessoais. O sentimento de gratidão por ter um lugar para habitar, ainda que em alguns casos envolva dificuldades, é frequentemente expressado nos relatos.
Alguma história te chamou mais atenção?
Todas as vivências de quarentena já compartilhadas são muito ricas. É interessante perceber como somos capazes de nos adaptarmos a diferentes situações, quando se tem solidariedade e união. Receber os relatos e lê-los tornou-se uma atividade diária na minha quarentena. Me sinto parte da quarentena dos colaboradores, uma vez que eles abriram as portas de casa para o projeto. Cada relato é único, mesmo tendo situações parecidas abordadas. O projeto se tornou um meio de registrar esses questionamentos sobre o habitar nesse momento tão singular, uma coletânea do nosso presente para o futuro. Torço para que cada vez mais pessoas de diferentes perfis, realidades e localidades participem do projeto para que essa coletânea seja a mais rica e representativa possível.
Como você acha que ficará a casa depois do isolamento? Algum aprendizado para sua atuação como arquiteta?
Ainda é cedo para chegar a conclusões, porém passei a achar que as pessoas começaram a perceber que morar bem é uma questão de qualidade de vida e que a adaptabilidade na moradia é um aspecto essencial. Assim como nós devemos ser resilientes quanto à diferentes situações, as moradias necessitarão nos acompanhar nesse processo. Cada vez mais será necessário saber ler e interpretar a rotina da família para situações usuais e atípicas (só nos basta saber o que será o “novo normal” daqui pra frente) dentro de casa para poder prever soluções pros distintos cenários possíveis.
Relacionando o momento à minha prática profissional, já pude perceber algumas mudanças de posicionamento dos clientes devido a novas reflexões sobre o morar. Como, por exemplo, uma cliente que havia solicitado a cozinha separada da área social no briefing inicial do projeto da sua nova casa da praia (antes da pandemia) e, há duas semanas, pediu para alterarmos o projeto, integrando a cozinha ao estar por, agora, achar que é preferível priorizar uma maior conexão da cozinha com os demais ambientes do que se preocupar em esconder uma possível bagunça na cozinha.
Qual o seu relato da quarentena?
Já recebi algumas mensagens de pessoas perguntando se publicaria meu relato, mas optei até o momento por não o fazer, uma vez que criei o projeto para escutar a experiência dos outros. Mas, compartilho algumas coisas por aqui: descobri que o escritório, onde já trabalhava antes, é o melhor lugar para também fazer as sessões de terapia (agora online) - por ser um ambiente fechado e mais afastado do restante da casa; identifiquei em casa o melhor lugar para fazer as “calls” e as “lives” e que não é o mesmo lugar onde eu trabalho; apesar de ter espaço físico para fazer exercícios, me falta vontade; nos dias ensolarados, a sacada tem sido muito mais aproveitada – a rede foi recolocada e a espreguiçadeira, herdada do meu avô, antes guardada, passou a ser usada novamente. A área de serviços que nos últimos anos parecia grande, hoje parece pequena a cada vez que precisamos desinfetar as compras que vêm da rua. Tenho olhado muito mais para a rua e isso às vezes parece fazer o apartamento ficar mais escuro. Estar mais atenta à casa me fez perceber que faltava pouco para o cacto encostar no forro de gesso e que estava na hora de proteger a bergamoteira da voracidade dos passarinhos. Passei a frequentar muito mais a cozinha para cozinhar e ajudar com a louça. O café da manhã, que antes era feito na copa e às pressas, agora é em família e na sala de jantar.
* CAMILA DA ROCHA THIESEN Arquiteta e Urbanista pela FAU UniRitter (2012). Sócia e fundadora do Metropolitano Arquitetos, no qual se dedica a projetos em diversas escalas, incluindo participações em concursos de arquitetura - em seis deles, obteve a primeira colocação. Seu trabalho de graduação foi premiado nos concursos Opera Prima (24a ed.) e Archiprix International (2013). Desde 2018 tem participado como jurada em comissões avaliadoras em bancas, congressos e Prêmios de Arquitetura. Membro do Comitê de Sede e Infraestrutura da AAMAC-RS para a implantação da sede MAC-RS IV Distrito. Criadora do projeto “habitar a quarentena”.